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  • Emerson Erivan de Araújo Ramos

Adeus, princípio acusatório: o caso Alexandre de Moraes e o fim do processo penal democrático


Esta semana, um conflito no interior do Supremo Tribunal Federal tomou conta dos noticiários nacionais. Em meio a uma onda de críticas que assola a Corte, seu presidente (Dias Toffoli) instaurou de ofício, em 14 de março deste ano, um inquérito para averiguar supostas “notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animus caluniandi, diffamandi ou injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares, extrapolando a liberdade de expressão”[1]. O desenrolar dessa história acabou por gerar um conflito no interior da própria Corte, ensejando um grande debate jurídico a respeito da forma autoritária como tem sido conduzida a investigação. Para refletir sobre esse episódio, é antes necessário explanar sobre os contornos do processo penal em um Estado Democrático de Direito.

A partir do Iluminismo, a defesa das liberdades individuais consolidou-se como um esforço democrático em prol da divisão de poder no aparelho de Estado, luta que acabou por desaguar no constitucionalismo moderno. Esse mesmo esforço alcançou também o processo penal, entendido como um instrumento de realização dos direitos fundamentais contra os abusos do Estado. Isso porque um processo penal democrático só é possível através da repartição do poder entre as três peças que compõem o rito: o acusador, a defesa e o julgador. Essa estrutura processual é responsável por originar uma série de princípios que orientam e limitam o Estado em seu poder de punir, evitando o autoritarismo. Dentre esses princípios, está o acusatório e o da imparcialidade.

O princípio acusatório é uma consequência lógica da distribuição do poder no interior do processo, estabelecendo uma paridade de armas entre a acusação e a defesa e garantindo a imparcialidade do julgador (que atua preponderantemente como espectador). Assim, observa-se que a paridade de armas e a imparcialidade são subprincípios derivados da sistemática acusatória, os quais, conjuntamente, definem a função de cada um dos membros do processo e evitam a concentração de poder em seu interior. Esse arcabouço é essencial para a realização de um julgamento justo.

A garantia da imparcialidade de um julgador, por sua vez, depende do papel que exerce ao longo do processo penal. Para tanto, é necessário que o juiz posicione-se muito mais como um espectador e defensor das garantias do réu do que como um ator em busca de evidências para a condenação. O juiz-espectador, assim, possui sua imparcialidade garantida através de algumas condições, que envolvem a inércia da jurisdição e a supressão de seus poderes instrutórios, importando que a gestão das provas deve se dar exclusivamente entre as partes[2].

Retornemos agora a nossa corte suprema. Malgrado o direito brasileiro vede a instauração de inquérito policial de ofício, Dias Toffoli assim o fez justificando-se no artigo 43 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, que estabelece: “Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro”. A invocação desse fundamento para a abertura de investigação preliminar de ofício sob competência do STF, contudo, parece muito estranha se se observa que os crimes não ocorreram “na sede ou dependência do Tribunal”, tal como prega o Regimento, o que significa uma incompetência da Corte para o julgamento do caso.

Mas, os problemas não param por aí. Dias Toffoli escolheu arbitrariamente o ministro Alexandre de Moraes como relator do caso, ignorando o princípio da livre distribuição processual. Esse princípio está consolidado tanto no Novo Código de Processo Civil (art. 284) quanto no Regimento Interno do próprio STF, o qual prevê em seu artigo 66: “A distribuição será feita por sorteio ou prevenção, mediante sistema informatizado, acionado automaticamente, em cada classe de processo”.

Um imbróglio maior, entretanto, teve início no dia 16 deste mês. Como medida instrutória na investigação, Alexandre de Moraes autorizou que fossem realizadas busca e apreensão no domicílio de sete suspeitos no caso, determinando também o bloqueio de suas redes sociais. Tal episódio foi amplamente abordado pela mídia como uma forma de criminalização da liberdade de expressão. E para além disso, esse fato foi um escândalo do ponto de vista processual: se o ministro Alexandre de Moraes é investigador e ao mesmo tempo relator do caso, como poderá julgar imparcialmente?

Aqui, gostaria que o leitor realizasse um exercício de comparação. Imagine que um delegado de polícia ouve falar que você cometeu um determinado crime. Imagine também que esse delegado instaura, de ofício, procedimento investigatório para averiguar o caso. Ele adentra sua casa, apreende seus bens e acredita ter encontrado provas que você cometeu certo delito. O que você acharia se esse mesmo delegado o julgasse? É isso que está acontecendo aqui: o investigador e o julgador encontram-se na mesma pessoa. Tudo autorizado pela última instância do Poder Judiciário.

Como se não bastasse, o inquérito supramencionado foi aberto em 14 de março de 2019, decorrendo toda a investigação sem que tenha havido intimação para que o Ministério Público manifeste-se. Ora! Se, nos termos do art. 129 da Constituição Federal, o Ministério Público é responsável tanto pela promoção da ação penal pública quanto pela fiscalização da legalidade dos procedimentos judiciais (além do controle das investigações), como ele pode ter sido ignorado no processo?

Percebendo essa clara inconstitucionalidade, a Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, acertadamente resolveu, no dia 16 de abril, “promover o arquivamento” do inquérito em testilha ainda que não tenha sido intimada a manifestar-se. Ocorre, porém, que o relator do caso julgou improcedente o pedido do órgão acusador para arquivar a investigação sob o argumento de que “não se configura constitucional e legalmente lícito o pedido genérico de arquivamento (...)”[3]. De forma bastante clara, essa decisão viola gravemente o princípio acusatório descrito acima.

Sustentei no início do texto que a distribuição do poder no interior do processo é uma conquista democrática que deriva do Iluminismo – mas também, das violentas revoluções liberais que depuseram o absolutismo monárquico. Quando esse poder é distribuído de maneira a estabelecer a paridade de armas entre a defesa e a acusação, garantindo também a imparcialidade do juiz, tem-se o que se chama de sistema acusatório. Esse sistema é a medida das democracias modernas e garante que o juiz não se contamine ao realizar investigações, consubstanciando um julgamento justo.

Refletindo, por fim, sobre o caso Alexandre de Moraes, é possível perceber que o ministro concentrou em si todos os poderes do processo. Além de investigador e julgador do suposto crime do qual aparentemente é vítima, decidiu também ignorar o Ministério Público em seu pedido de arquivamento, passando a fazer as vezes do órgão acusador.

Em um contexto como esse, qualquer defesa é inútil e o réu está fadado à condenação. De modo que é lastimável perceber que presenciamos esta semana a morte do princípio acusatório em terras nacionais. E eu vim aqui dar meu último adeus.

Emerson Erivan de Araújo Ramos é Professor de Direito Penal e Processual Penal, mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba (PPGCJ/UFPB) e doutorando em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba (PPGS/UFPB).

[1] Texto extraído da decisão que rejeita o pedido de arquivamento da Procuradoria-Geral da República, disponível aqui.

[2] Cf. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos Princípios do Direito Processual Penal Brasileiro. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, a. 30, n. 30, 1998. LOPES JÚNIOR, Aury Lopes. Fundamentos do Processo Penal: Introdução crítica. São Paulo: Saraiva, 2017.

[3] Disponível aqui.

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